A RELAÇÃO ENTRE ARQUITETURA E ESTRUTURA: CONCEITOS E METODOLOGIA.
- ana paula lepori

- 15 may 2021
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Mijaíl Bajtín dizia: ‘os problemas da técnica somente podem isolar-se dos problemas da sociologia da forma de um modo abstrato: é impossível separar realmente o sentido artístico de algum procedimento’.
A literatura é uma manifestação artística que estudou de maneira exaustiva os elementos que compõem o discurso literário e assim como a arquitetura é também um meio de expressão social, portanto, de caráter marcadamente ideológico e que, como toda forma ideológica está criada por e para a sociedade e transmite uma mensagem.
Assim como para o escritor, para o arquiteto também deve ser importante conhecer, controlar e trabalhar os elementos que constroem a comunicação do objeto arquitetônico para assim, de maneira consciente, planificar a mensagem que inevitavelmente o projeto vai transmitir.
Podemos estabelecer um paralelismo entre estas duas expressões artísticas – arquitetura e literatura – mas devemos guardar algumas diferenças substanciais. Em 1º lugar, à diferença da obra literária, na arquitetura não escolhemos lê-la, como quem escolhe o livro que se quer ler, a arquitetura está exposta constantemente aos ‘leitores’ e isso cria uma relação muito mais intensa entre o arquiteto e o usuário, e portanto, uma grande responsabilidade no ato de projetar pois à diferença da obra literária, a relação entre o leitor e a obra de arquitetura, não se dá muitas vezes, nem de forma consciente nem de maneira consentida pelo usuário do objeto arquitetônico. Também existe outra característica diferencial entre a obra literária e a obra arquitetônica. Um livro, o objeto físico em si, quando em contato com um entorno diferente ao que foi impresso não modifica. Em câmbio, o objeto arquitetônico, dependendo do entorno pode mudar consideravelmente. Assim sendo, deve-se ressaltar que a relação do objeto arquitetônico com o seu entorno imediato é um elemento ativo na construção da comunicabilidade deste objeto arquitetônico.
Deste modo então, qual o papel que desempenha a estrutura dentro da arquitetura?
Quando entendemos a arquitetura como uma linguagem, um meio de transmissão de uma mensagem, um canal de comunicação, a estrutura é uma peça fundamental na construção do discurso arquitetônico. A estrutura, podemos chamá-la também de técnica da forma, é responsável de dar sustentação a mensagem que o arquiteto quer transmitir através da do objeto arquitetônico projetado.
Portanto, se não podemos separar a estrutura da mensagem que queremos transmitir, para construir um objeto arquitetônico altamente comunicativo devemos em primeiro lugar, conhecer o papel da estrutura na construção da comunicação do objeto, mas também quais os outros elementos que dispomos para elaborar um discurso comunicativo.
Além da solidez e da plasticidade da estrutura, outros elementos são ativos na construção do discurso arquitetônico, alguns tão sutis como fundamentais como podem ser o contexto, a interpretação individual, o sobreentendido, a metáfora, o estilo, porém será a técnica da forma que solidificará muitos dos significados que o objeto arquitetônico queira transmitir.
A estrutura é o que dá materialidade a forma que, por sua vez, deve representar um conteúdo, um discurso. Quando é assim, o caráter comunicativo e o valor sociológico da forma se sobrepõem ao valor hedonista (da beleza) a que muitas vezes a forma fica reduzida. Neste sentido, a técnica da forma ganha uma maior relevância, pois conscientemente transmite um conjunto de valores, uma visão de mundo, uma mensagem. Assim, a estrutura adquire um alto valor comunicativo e materializa o valor simbólico da forma.
Deste modo, a forma pode dar sustentação ao discurso arquitetônico e de diferentes maneiras. Muitos arquitetos trabalharam o poder comunicativo da estrutura de maneira consciente nas suas obras. A seguir, se apresentam três maneiras, com enfoques muito distintos, mas que buscam estabelecer uma estreita e consciente dialogia entre forma, conteúdo, material e técnica, tornando-os indissociáveis e a estrutura assume um papel ativo no significado do discurso.
OSCAR NIEMEYER E O MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA.
A relação entre arquitetura e estrutura na obra de Niemeyer é extensa e prolífera. Ao longo da sua prática profissional esta relação foi incansavelmente trabalhada. A estrutura é protagonista na construção da monumentalidade tão presente na obra do arquiteto principalmente as de caráter institucional.


A través da solução estrutural, Niemeyer busca materializar conceitos como singularidade, unidade arquitetônica e desenvolvimento*. Com o passar do tempo ele foi reduzindo cada vez más a sua arquitetura a dois ou três elementos, simplificação formal que não significa necessariamente uma simplificação estrutural. Ao contrário, cada vez mais Niemeyer foi elaborando objetos arquitetônicos mais abstratos e mais complexos estruturalmente, colocando o material [o concreto armado] e a técnica construtiva em seus limites.
O Memorial da América Latina é um exemplo da simplificação formal vs. a complexidade estrutural. Niemeyer joga todo o tempo entre a forma e a maneira de elaborar a forma.
Apesar dos edifícios da biblioteca, salão de atos e auditório se assemelharem formalmente, a complexidade e resolução estrutural não são as mesmas. Sussekind, calculista destes projetos, ressalta a particularidade construtiva de cada edifício:
“Dos prédios que compõem o complexo do Memorial da América Latina podemos dizer que cada um possui uma solução estrutural diferente. Foram soluções originais, decorrentes da própria necessidade da arquitetura, que fez com que cada prédio fosse tratado com uma obra independente das demais.”


No caso da Biblioteca, a singularidade da obra se resume a complexidade estrutural da grande viga porticada que sustenta toda a composição do objeto arquitetônico. Uma grande viga protendida, oca e porticada de 90 metros de comprimento e 6,5m de altura, onde se apoiam três cascas curvas em concreto armado com diferentes comprimentos. Esta viga de características tão particulares exigiu que fosse construída em três fases, como descreveu o calculista Sussekind no caderno técnico do Memorial da América Latina: “Uma viga com estas proporções exigiu alguns cuidados em sua execução: foi subdividida em três trechos ao longo do seu comprimento, para reduzir o efeito da retração do concreto e cada trecho foi concretado em três fases – primeiro o banzo inferior, depois as duas almas e finalmente o banzo superior.”
O Salão de Atos, apesar de também ter uma grande viga (60m de comprimento e 4,5m de altura) oca, protendida e porticada, apesar de ser formalmente muito simples, sua complexidade estrutural é ainda maior que a da biblioteca. A viga, elemento protagonista do Salão de Atos, recebe o empuxo horizontal de uma única casca de concreto apoiando-se apenas por um lado, ficando deste modo ‘descompensada’. A fina casca de concreto não segue de maneira inclinada até o chão como no caso da biblioteca, mas toma outra solução formal que termina por transformar o resultado estrutural: a casca de concreto se apoia sobre uma parede vertical. O momento de flexão desigual entre a viga e a parede levou o calculista a propor cinturões protendidos na base do edifício, circundando todo o perímetro para dá-lhe a estabilidade estrutural necessária.
No caso do Auditório a composição viga – casca assume outra composição possível e nova complexidade estrutural diferente das duas anteriores. Este jogo compositivo e estrutural entre as vigas e as cascas de concreto ora estão acompanhados de pilares ora de paredes que servem como apoio a composição. No Auditório, a primeira casca se apoia sobre uma parede de onde também parte a segunda casca que, na outra extremidade, termina se apoiando na grande viga projetada. Da viga sai a terceira casca que no outro extremo se apoia sobre uma parede. A complexidade do Auditório está nas diferentes dimensões e curvaturas das abóbodas. Dada a especificidade das abóbodas do Auditório, onde cada uma delas possui uma altura diferente, se optou por moldes deslizantes que possibilitassem a construção por trechos.
Niemeyer joga todo o tempo entre a forma e a maneira de elaborar a forma. No processo de abstração e simplificação formal do conjunto, Niemeyer vai dando as curvas e vigas porticadas, diferentes graus de complexidade, propondo constantemente outras maneiras de construí-las, reinventando-as e desdobrando-as em novas composições estruturais. Diz Niemeyer:
“Dentro dessa arquitetura, procuro orientar meus projetos, caracterizando-os sempre que possível pela própria estrutura. Nunca baseada nas imposições radicais do funcionalismo, mas sim, na procura de soluções novas e variadas, se possível lógicas dentro do sistema estático. E isso, sem temer as contradições de forma com a técnica e a função, certo de que permanecem unicamente as soluções belas, inesperadas e harmoniosas. Com esse objetivo, aceito todos os artifícios, todos os compromissos, convicto de que a arquitetura não constitui uma simples questão de engenharia, mas uma manifestação do espírito, da imaginação e da poesia.”
Niemeyer busca, portanto, criar constantemente novas formas para funções conhecidas, liberando a arquitetura do funcionalismo, onde a forma segue a função, que ele tanto criticava, assim como da tradição, entendida como repetição dos estilos anteriores ao moderno ou da perpetuação do tipo na arquitetura.
Niemeyer utiliza a complexidade estrutural como meio para chegar a conceitos de inovação e singularidade inerentes a uma obra de arte. Este posicionamento assumido por Niemeyer na elaboração de muitos dos seus projetos gera também algumas críticas por deixar em segundo plano, questões tão importantes na elaboração dos objetos arquitetônicos como são o usuário e o entorno quando a arquitetura é entendida como um fato sociocultural.
Bajtín, a respeito do papel do material na criação artística, comenta: “a criação artística, definida por sua relação com o material, é a sua superação.” Condição esta com que a obra de Niemeyer está radicalmente a favor.
LINA BO BARDI E O SESC POMPÉIA.
Na obra de Lina Bo Bardi, a técnica da forma é tão protagonista quanto na obra de Niemeyer, mas de maneira muito distinta. A estrutura não aparece tanto como um monumento, mais bem ela é um documento.

Enquanto na obra do Niemeyer a estrutura aparece como um processo contínuo de especulação da forma, principalmente a curva, dos limites do material e da técnica construtiva, Lina Bo Bardi, em cada projeto busca um material, uma técnica, um sistema construtivo, uma estrutura que seja capaz de transmitir os significados que a arquiteta está elaborando no projeto.

A forma e a técnica da forma estão completamente associadas ao conteúdo que a arquiteta quer transmitir. É assim que surgem estruturas tão diferentes entre si como a modernidade rompedora do MASP, da estrutura fabril hennebiqueana que Lina preserva como documento no Sesc Pompéia, dos contrafortes pré-fabricados de argamassa armada da Ladeira da Misericórdia ou da parede vegetal para a Prefeitura de São Paulo.
“Vejo a arquitetura profundamente vinculada com a ciência e a técnica. Na verdade, não há diferença nenhuma.”
Até mesmo as diferentes cadeiras que elabora ao longo da sua trajetória profissional sinalizam nesta direção.

Enquanto a beleza é primordial na eleição da estrutura que sustentará o discurso niemeyeriano, na obra de Lina Bo Bardi, a forma não tem nada a ver com a beleza, mas sim com a poesia. Lina não busca ‘conforto visual’, nem agressão gratuita, ela propõe um estranhamento, “a liberdade do artista sempre foi individual, mas a verdadeira liberdade somente pode ser coletiva. Uma liberdade consciente da responsabilidade social, que derrube as fronteiras da estética, campo de concentração da civilização ocidental.”
Experiência popular. A dignidade da estrutura, do útil e necessário.
ALDO VAN EYCK E OS PLAYGROUNDS DE AMSTERDAM.

Enquanto na arquitetura de Lina Bo Bardi, Lina busca diferentes tipos de estruturas para que materializem significados específicos que ela quer abordar, Aldo van Eyck, arquiteto holandês, busca construir objetos arquitetônicos cada vez mais elementares, com uma relação estável entre forma e técnica da forma, mas diferentemente de Niemeyer, esta simplificação formal na obra de van Eyck não é em busca de uma singularidade arquitetônica; é em busca da construção de elementos arquetípicos, capazes de gerar reconhecimento como no caso das estruturas que elabora para os jogos dos mais de 700 playgrounds que van eyck construiu ao longo de 30 anos. A fim de criar uma estrutura reconhecível e uma rede de lugares na cidade, van eyck se apóia na forma elementar, como suporte que sugere e convida as crianças a desenvolverem movimentos tão característicos e elementares da infância como podem ser correr, pular, saltar, equilibrar, pendurar...

Estas estruturas conscientemente buscam não determinar uma função fixa, mas promover a experiência e a imaginação das crianças... por isso também nada de estruturas figurativas que remetem a uma imagem determinada. As estruturas elementares buscadas por van eyck ora podem transformar-se em cabana ou em montanha, em mesa ou plataforma para saltos, borda da caixa de areia ou bancada...
Esta estrutura dos jogos dos playgrounds obedece a uma regra básica para van Eyck: o tamanho oportuno – isso permite que o playground seja tanto um conjunto de jogos quando usado por crianças como esculturas urbanas quando estejam vazios.


Aldo van Eyck se ocupa de que as estruturas que projeta ocupem de atender o local e o global, o perto e o distante, o grande e o pequeno, o moderno e o vernacular... a relatividade das coisas:
“árbol es hoja y hoja es árbol – casa es ciudad y ciudad es casa – un árbol es un árbol pero también es una enorme hoja una hoja es una hoja pero es también un árbol diminuto – una ciudad no es ciudad a no ser que sea también una enorme casa, una casa es una casa sólo si es también una ciudad diminuta”.

A busca da singularidade monumental de Niemeyer, do estranhamento e poesia bobardiano ou da relatividade elementar de Van Eyck a estrutura é o veículo pelo qual estes arquitetos buscam conscientemente que reflitam significados e metáforas. Cada um busca uma dimensão e um significado diferente para a estrutura do objeto arquitetônico, mas em todos eles a estrutura possui uma dimensão ética entre forma- conteúdo – material-técnica, dimensão científica e inevitavelmente a dimensão estética.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 BAJTIN, Mijail M. "La palabra en la vida y la palabra en la poesía. Hacia una poética sociológica. IN Hacia una filosofía del acto ético. De los borradores y otros escritos. ." Pensamiento Crítico / Pensamiento Utópico. 100. Serie Estudios Culturales Ed. Anthropos Editorial / Editorial de la Universidad de Puerto Rico Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial, 1997.
2 LEPORI, Ana Paula de Oliveira. ‘El taller de proyectos como laboratorio: memoria y lugar’. Tese de doutorado publicada em: http://www.tesisenxarxa.net/TDX-0729108-120646. Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona (ETSAB), Universidade Politécnica da Catalunha: BARCELONA, Espanha. 2006
3 SUSSEKIND, José Carlos. “Caderno Técnico.” São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1989.
4 SUSSEKIND, José Carlos. “Caderno Técnico.” São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1989.
5 NIEMEYER, Oscar. “Forma e função na arquitetura.” Revista Módulo.1960: (p.5).
6 el tipo es una especie de regla, creadora de una estructura repetible, una especie de sistema combinatorio, una protoforma (…) El tipo es algo permanente y complejo que en muchas ocasiones se antepone a la forma y la constituye, la transforma en una estructura. Es la perpetuación de un lenguaje que ha encontrado en una forma determinada su traducción justa. La construcción del tipo en la arquitectura es, en esencia, cultural. Esta situación puede manifestarse a través del uso y también como contenido. In LEPORI, Ana Paula de Oliveira. ‘El taller de proyectos como laboratorio: memoria y lugar’. Tese de doutorado publicada em: http://www.tesisenxarxa.net/TDX-0729108-120646. Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona (ETSAB), Universidade Politécnica da Catalunha: BARCELONA, Espanha. 2006
7 BAJTÍN, Mijail. "El problema del contenido, el material y la forma en la creación literaria." Estética de la creación verbal México: Siglo XXI, 1982. (p.51).
8 ROQUE, Carlos. "Eu acho que o Brasil não faz parte do Ocidente." – Entrevista a Lina Bo Bardi. Interview 1983: (p.24-26).
9 BO BARDI, Lina. "Tempos de Grossura: o design no impasse." Pontos sobre o Brasil. Ed. Instituto Lina Bo e P.M.Bardi Sao Paulo: 1994. (p.14).
10 IN VAN EYCK, Aldo. "El interior del tiempo y otros escritos." Revista Circo 1996:





















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